11 abril 2019

Quinta-feira | 21h45 | Cine-Teatro Garrett
Sessão #1449
Título original: Terra Franca

De: Leonor Teles
Género: Documentário
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2018, 80 min.


Estreado no Festival de Cinema du Rée, em Paris, onde recebeu o "Prix International de la Scam", “Terra Franca” fez também parte da competição oficial do DocLisboa.


SINOPSE
Depois de ter dado nas vistas com as curtas-metragens “Rhoma Acans” e “Balada de Um Batráquio” (que a transformou na mais jovem vencedora de sempre do Urso de Ouro, em Berlim),  a realizadora Leonor Teles assina a sua primeira longa documental, acompanhando a vida de Albertino Lobo, um pescador de Vila Franca de Xira, terra que a viu crescer, através de um ano inteiro.




Seleção da melhor crítica: por João Araújo, in À Pala de Walsh

O melhor filme que vi no festival, além da retrospectiva de António Reis e Margarida Cordeiro [o monumental Painéis do Porto (1963) e o belíssimo Trás-Os-Montes (1976) numa magnífica cópia restaurada], foi a primeira longa-metragem de Leonor Teles. Não é descabido pensar numa ligação entre esse legado Reis-Cordeiro e este documentário de Leonor Teles pelo embelezamento de um quotidiano mundano e uma ligação poética à natureza, mesmo que a linguagem e o campo de jogo sejam diferentes. Este é um filme sobre um pescador, que na verdade é sobre uma família, que na verdade é sobre uma comunidade, mas também sobre muito mais, sobre todos nós. Lia antes de ver o filme o que o Luís Mendonça escreveu sobre Terra Franca aquando da sua exibição no Doclisboa, que era “um filme inteiramente ‘deste mundo’”, e no fim pensava como essa era uma descrição e um elogio perfeito: este é um filme que torna este mundo como algo d’outro mundo, e esse é o seu maior feito, transformar o vulgar em sublime, os “tempos mortos” de outros em tempos vivos para nós. Começamos com Albertino, sereno e solitário no comando do seu barco, saindo de casa ainda de madrugada para dedicar-se ao rio, onde se sente confortável na tarefa que repete todos os dias, filmado aqui como um herói que não desiste. Depois conhecemos a mulher de Albertino enquanto este espera que ela abra o pequeno café que gere, numa outra rotina elevada a um momento de estoicidade. Depois, a família, as conversas à volta da mesa com as filhas e a neta, e depois ainda a vida naquele bairro de pescadores, o convívio nos cafés com os vizinhos, os jogos de futebol na televisão, os passeios com o cão, a mudança das estações do ano e ao mesmo tempo o mundo que pouco muda.

A naturalidade com que são apresentados estes movimentos de repetição, que marcam a passagem do tempo como um metrónomo, habituam-nos aos diferentes elementos do quotidiano desta família. As ténues linhas narrativas que aparecem – a perda da licença de pesca de Albertino a certo ponto, um casamento que se avizinha – são menos importantes do que expandir uma ideia de continuidade e união, de uma efemeridade que faz parte da vida. Os pequenos momentos-quadro que se sucedem mostram, através dos planos e composições pictoriais, reminiscentes de uma melancolia solene partilhada por Edward Hopper e Yasujirô Ozu, um olhar de Leonor Teles que revela uma enorme sensibilidade na preocupação de criar retratos plenos de empatia e respeito pelas suas personagens, em ceder espaço à voz própria destas pessoas, e até com algum humor, na rábula do aspirador que pontua o filme, e também carinho, pela forma como acompanha Albertino enquanto este tenta preencher os seus dias enquanto espera poder voltar ao rio, muitas vezes solitário no enquadramento. A fotografia do filme é magnífica, em particular nos momentos em que regista Albertino isolado no seu mundo, quase nas margens, tal como o trabalho de edição que, na tal repetição, constrói um sentido de tempo próprio e fiel a este mundo, e o uso da música é notável na forma como preenche momentos de silêncio com um novo subtexto – fica na memória um “quadro” em que vemos um café com as janelas embaciadas pelo calor e um cão à porta, e a música segura esse momento no tempo. Para além destes elementos, fica um filme de coração aberto, cheio de esperança e um olhar de igual para igual – à medida que avança o filme, parece que a câmara já faz parte daquela família, ou melhor, já fazemos, somos mais um – e não se pode pedir muito mais.


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