04 abril 2019

Quinta-feira | 21h45 | Cine-Teatro Garrett
Sessão #1448
Título original: If Beale Street Could Talk

De: Barry Jenkins
Com: KiKi Layne, Stephan James, Regina King
Género: Drama
Classificação: M/14
Outros dados: EUA, 2018, 119 min.

Óscares 2019: Vencedor de Melhor Atriz Secundária (Regina King), e Candidato aos Óscares de melhor argumento adaptado (Barry Jenkins) e melhor banda sonora (Nicholas Britell)
AFI Awards 2019: Melhor Filme do Ano
Film Independent Spirit Awards 2019: Vencedor de Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Atriz Secundária


SINOPSE
Nova Iorque, década de 1970. Tish e Fonny são dois jovens afro-americanos apaixonados e cheios de esperança no futuro. Quando ele é preso injustamente devido a uma acusação de violação, o casal vê o seu mundo ruir. Algum tempo depois, ao descobrir que está grávida do primeiro filho de ambos, Tish toma uma decisão: encontrar um meio de provar o erro judicial que colocou o namorado atrás das grades para que ele possa assistir, em liberdade, ao nascimento da criança.

Com realização de Barry Jenkins (responsável pelo triplamente oscarizado "Moonlight"), um filme dramático sobre injustiça e preconceito que se baseia no romance homónimo de James Baldwin.



Seleção da Melhor Crítica: por João Araújo, in À Pala de Walsh

Com Moonlight (2016) Barry Jenkins assinou uma das mais auspiciosas e importantes obras do cinema americano dos últimos anos, uma quase-estreia [se descontarmos o obscuro Medicine for Melancholy (2008)] plena de sensibilidade e honestidade, que colocava a experiência negra numa América no centro da atenção. Não surpreende assim que a Jenkins tenha sido confiado a primeira adaptação de uma obra de James Baldwin. Começa aí a primeira questão do filme, do embate entre o material original e a leitura de Jenkins, que, por muito que seja reverente da obra do escritor, aplica necessariamente a sua interpretação. A fidelidade ao material original é uma questão antiga, perceber até que ponto é legítima a autonomia de uma interpretação que desvia-se do olhar da obra que adapta – é uma das críticas que o Ricardo Vieira Lisboa aponta no seu texto sobre o filme. Entendo que desde que essa interpretação não resulte numa simplificação do material que adapta ou numa abordagem mais pobre, pode igualmente produzir resultados interessantes, mesmo que no filme o tom seja mais optimista e “limpo” em relação ao livro. Resulta de um aprofundamento em observar a acção através do ponto de vista um tanto ingénuo da protagonista da história, respeitando ainda assim os dois temas centrais: os problemas raciais vividos pelas personagens e reflectidos na sociedade à sua volta e o desabrochar de uma relação romântica, que surge assim quase como um antídoto.

A segunda questão diz respeito ao tratamento visual dado à história. É inegável que Jenkins – não fosse ele um adepto do estilo de Wong Kar-wai -, embeleza este mundo com uma fotografia delicada e cuidada, onde os detalhes, como a palete de cores, o uso da música ou a caracterização do espaço e personagens, são trabalhados ao pormenor de modo a criar um cenário quase etéreo, talvez demasiado artificial considerando as atribulações e dificuldades da altura retratada. Este é outro dos aspectos indicados pelo Ricardo. É certo, por exemplo, que o encontro entre as duas famílias no início do filme parece demasiado encenado, que o primeiro encontro sexual entre Tish e Fonny, o par de amantes, é idílico e sedado e não trepidante, que as imagens do casal debaixo do guarda-chuva vermelho são demasiado perfeitas, ou que a personagem maléfica do polícia racista é unidimensional (o que não quer dizer que não exista). Porém, sobre isso, aponto para um texto do próprio Barry Jenkins sobre a adaptação em que sobressai a seguinte passagem, como defesa dessa transformação poética do mundano em belo e subliminal: “We don’t expect to treat the lives and souls of black folks in the aesthetic of the ecstatic. It’s assumed that the struggle to live, to simply breathe and exist, weighs so heavily on black folks that our very beings need be shrouded in the pathos of pain and suffering” e ainda “It is this need, this desire to render blackness in hues of dread and sorrow, that leads some to reject rapturous renderings of black life as inauthentic. This misconception would be trivial if it didn’t trivialize an unquestionable fact about black life, for who else has wrested as much beauty from abject pain? Who else has manifested such joy despite outsized suffering?”

Interessa-me então sublinhar alguns momentos em que a conjugação entre o material original e a abordagem estilística resulta em instantes disruptivos, como se o filme fugisse temporariamente ao controlo quer do livro, quer da adaptação: a linguagem dura entre as duas famílias nesse encontro inicial, a forma como uma agressão entre marido e mulher surge e dissipa-se, celebração e miséria unidos na mesma cena; uma longa conversa entre Fonny e um amigo acabado de sair da prisão como uma premonição do inescapável destino de perseguição racial; o encontro entre a mãe de Tish e a mulher que acusa Fonny de violação, os gritos dessa mulher e o choro da mãe; e acima de tudo, a forma como Jenkins usa dois grandes planos em campo/contra-campo dos amantes em que estes olham directamente a câmara, repetido em duas ocasiões perto do fim (planos herdeiros de Jonathan Demme, como refere Paul Thomas Anderson numa conversa com Jenkins), primeiro por trás do vidro que os separa na prisão, depois num momento inicial de namoro, antes da tempestade: o desespero e a esperança retratados de igual forma nos olhares dos dois.

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